Por que os Jogos Olímpicos já não são assim tão desejados
Katia Rubio é professora associada da Escola de Educação Física e Esporte da USP e membro da Academia Olímpica Brasileira
[Este texto inaugura a coluna Esporte e Sociedade, com que passo a colaborar quinzenalmente neste Jornal)
]
RUBIO é professora associada da Escola de Educação Física e Esporte da USP e membro da Academia Olímpica Brasileira
JKatia Rubio – Foto: Cecília Bastos / USP
originalmente publicado no Jornal da USP
Alguns
fenômenos contemporâneos grandiosos guardam parte de uma história
marcada por dificuldades e quase fracasso. Os Jogos Olímpicos são um
deles.
Na atualidade os Jogos Olímpicos,
principalmente de verão, são considerados um dos maiores espetáculos do
planeta. Um evento capaz de mobilizar público presencial, espectadores
de emissoras de TV aberta e de mídias digitais, e, principalmente,
patrocinadores globais, como nenhum outro. Os cinco anéis entrelaçados
são uma das marcas de maior valor agregado do planeta porque, em tese,
carregam aquilo que há de mais utópico no esporte: valores, a celebração
da paz e o congraçamento entre os povos.
Durante décadas esse discurso mobilizou
atletas, instituições e governantes em torno do desejo de ter em seu
território uma competição que representava a síntese de um ideal humano.
Entretanto, parece ter chegado o momento de rever todo o processo que
levou o Movimento Olímpico a uma encruzilhada.
Criado no final do século XIX para ser uma
competição de caráter internacional, os Jogos Olímpicos foram
prontamente chamados à sua terra natal, a Grécia. Parecia óbvio que os
gregos do presente devessem realizar em seu território a mesma
celebração de séculos passados. Porém, não era essa a ideia de Pierre de
Coubertin, que entendia que os Jogos Olímpicos da Era Moderna deveriam
ter um caráter internacionalista e para tanto deveriam ser realizados em
países diferentes, multiplicando assim seu ideal. E assim, depois da
primeira edição realizada em Atenas, os Jogos Olímpicos passaram a
circular entre cidades que dispusessem de condições materiais
suficientes para abrigar algumas centenas de atletas, vindos de vários
continentes. A Europa, como centro do “mundo civilizado”, era
inegavelmente o lugar certo para essa realização.
O processo de postulação e seleção das
sedes na fase de estabelecimento dos Jogos Olímpicos não era simples. A
infraestrutura necessária demandava acordos com organizadores que
deveriam promover obras fundamentais à realização das competições. Cedo
percebeu-se que sem o apoio do poder público local isso era inviável.
Quando Coubertin entendeu ser essencial uma
aproximação com o continente americano, teve início a disputa entre
cidades para sediar os jogos. Em 1904 Chicago e Saint Louis lutaram pelo
direito de realizar aquela que seria a primeira edição olímpica fora da
Europa. Desde então o processo de postulação e escolha da cidade
olímpica envolveu inúmeras estratégias de cidades e governantes, em
processos que demoravam anos. Algumas escolhas foram realizadas em
assembleias, com inúmeras rodadas de negociação, outras foram definidas
por votos enviados por correio, quando ainda as comunicações não eram
realizadas a distância, em tempo real.
Essas disputas ganharam destaque e
importância à medida que os Jogos Olímpicos se tornaram um evento
grandioso, e um palco no qual se descortinavam embates, principalmente
durante a fase de estabelecimento (de 1920 a 1936) e durante a Guerra
Fria (de 1948 a 1984). As competições já não eram apenas um palco de
realização para atletas e países mostrarem sua excelência atlética, mas
também se transformaram em um campo de disputa política e econômica e
demonstração de força e poder. Sediar os Jogos Olímpicos significava
estar no centro das atenções mundiais e participar de um seleto grupo de
países capazes de suportar as demandas de um evento de tal magnitude.
Com a agilidade de um transatlântico, [o COI]
passou a tomar medidas de longo prazo. Conseguiu aproveitar a disputa
entre duas grandes cidades para definir as sedes de 2024, em Paris, e
2028, em Los Angeles
As teses econômicas básicas sobre demanda e
oferta explicam o que acontece quando há oferta demasiada. Aquele que
detém o poder da compra tem margem para barganha e, portanto, é capaz de
impor os limites da negociação de seu produto. Essa foi a lógica que
mobilizou a escolha das sedes olímpicas nas últimas décadas. Poder
público associado à iniciativa privada de companhias de porte global e
local transformaram as postulações em espetáculos que pareciam mesclar a
dinâmica de leilões com velhos acordos nupciais. Nos processos de
postulação podiam ser encontradas desde descrições pouco realistas de
equipamentos públicos a promessas de legado impossíveis de serem
cumpridas. Diante da possível realização de grandes negócios, chefes de
Estado passaram a se envolver pessoalmente no processo de conquista de
votos, posteriormente entendido como imoral e ilegal, levando a
renúncias e prisões.
Ou seja, com o passar do tempo o encanto
olímpico transformou-se em maldição. Casos como de Atenas, em 2004, e
Rio de Janeiro, em 2016, tornaram-se referência de exemplo a não ser
seguido por cidades com planejamento participativo e responsabilidade
pública. Não é de estranhar, portanto, que cidades como Calgary, que já
havia realizado os Jogos de Inverno de 1988, rejeitou a proposta de
novamente sediar a competição, seguida de outras cidades como Roma,
Innsbruck, Munique, todas elas ex-olímpicas, bem como Boston, Cracóvia,
Oslo e Graubünde. Em várias dessas cidades houve consulta popular e
prevaleceu o não. Curiosamente são cidades de países cujo sistema
democrático é estável. Destaque-se ainda que o maior porcentual de
rejeição vem das mulheres.
Atento aos sinais, o COI agiu. Porém, com a
agilidade de um transatlântico, passou a tomar medidas de longo prazo.
Conseguiu aproveitar a disputa entre duas grandes cidades para definir
as sedes de 2024, em Paris, e 2028, em Los Angeles. Com isso ganhou
fôlego para compreender e alterar as regras para a década de 2030. Por
outro lado, as sucessivas renúncias para os Jogos de Inverno empurraram a
competição para países totalitários, como a China, ou para sedes
conjuntas como é o caso de Milão e Cortina d’Ampezzo, modelo ainda pouco
testado.
Os Jogos Olímpicos deixaram, por sua vez,
de ser objeto de desejo e passaram a ser objeto de repulsa, acionando
assim um alarme prontamente ouvido.
Rejeição é aquele sentimento considerado
uma ferida psicológica cuja representação maior é a sensação de não
pertencimento, de vazio. A dor decorrente desse sentimento pode ser
entendida como uma ferida psicológica semelhante a cortes ou pancadas
que machucam e penetram a carne. Parecia improvável, décadas atrás, que
isso pudesse acontecer com os Jogos Olímpicos. Porém, o previdente
presidente do COI, Thomas Bach, já demonstra ter sentido o golpe. Formou
um grupo de trabalho para discutir e compreender o significado do
movimento da população dessas cidades e buscar saídas. Anunciou a
flexibilização do processo de candidaturas futuras e disse estar atento
às mudanças sociais.
Isso talvez possa significar mais respeito e
menos arrogância. Depois das últimas experiências olímpicas nas quais
as imposições eram tantas que chegavam a ferir, inclusive, a soberania
nacional, parece haver a compreensão de que determinações verticalizadas
levam a um esgotamento de relações. Embora o Movimento Olímpico pareça
estar alocado em uma nuvem e manifeste com frequência sua isenção
política e autonomia, ele depende inteiramente das sociedades situadas
em cidades e países que vivem as mazelas da política e economia locais. É
tempo de atentar para essa dura realidade e aprender a arte de negociar
e não apenas determinar. É cada vez mais claro que o mundo hoje está
atento a essa sutileza.
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